Mestre sala e porta bandeira, uma arte essencialmente nossa.
Obra do autor Bruno Chateaubriand.
Livro editado pela Ace Digital, com prefácio escrito por Alberto Mussa e ilustração de capa realizada pela artista plástica Isabela Francisco.
A obra tem como fio condutor entrevistas com personagens que ajudaram a construir a história da dança do mestre-sala e da porta-bandeira. Helena Theodoro, Manoel Dionísio, Vilma Nascimento, o pesquisador Felipe Ferreira, a carnavalesca Maria Augusta fazem parte do time de entrevistados. “Essa é apenas a primeira camada de um estudo de uma arte que praticamente não existia literatura. Muitos dados ainda precisam ser pesquisados com muito cuidado”, diz o autor. Com 86 páginas essa obra promete, com leveza, explicar a dinâmica da dança de uma casal de mestre-sala e porta-bandeira.
Prefácio Alberto Mussa
Não há quem assista pela primeira vez a um desfile de escola de samba e não se sinta fascinado, enfeitiçado por um bailado específico, distinto da dança executada pelos demais componentes; bailado esse que se restringe a um casal que, pelo traje mais suntuoso, pela presença imponente de um estandarte, se evidencia como epicentro da agremiação. Falo, naturalmente, da Porta-Bandeira e de seu Mestre-Sala.
Há uma ideia muito antiga, presente nas culturas arcaicas, oriunda certamente da época em que a humanidade se formou, que está na base dos ritos, das cerimônias religiosas, da mitologia em geral: a de o que símbolo de uma coisa tem a mesma natureza da coisa simbolizada; ou seja, o símbolo de uma coisa é a própria coisa. Logo, o assentamento de um Orixá é o próprio Orixá; a hóstia e o vinho são a carne e o sangue de Cristo; as pegadas de um pajé são o próprio pajé. Assim, o pavilhão de uma escola de samba é a própria escola de samba. Essa é a razão elementar da centralidade do casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira — guardiães rituais de toda a comunidade.
É fácil, portanto, deduzir que tanto a distinção das vestes, quanto a dos bailados, além da própria posição destacada de ambos no corpo da escola, têm como função salientar e enaltecer a presença sagrada do estandarte. Por isso, Porta-Bandeira e Mestre-Sala não sambam, ainda que em todo movimento que façam se possa perceber a imanência do samba. Por isso, suas fantasias carregam necessariamente um aspecto majestoso, incorporam a dignidade das realezas, ainda que todas as demais fantasias da escolas sejam tanto ou mais luxuosas.
Desde que assisti ao meu primeiro desfile, em 1975, nunca fiquei indiferente à passagem da Porta-Bandeira cortejada pelo Mestre-Sala. Mas meu olhar era simplório. Admirava a beleza, reconhecia a extrema sofisticação daquela arte — mas de maneira ingênua, intuitiva. Como um mero espectador. Foi só quando passei a integrar o júri do Estandarte de Ouro, tradicional prêmio oferecido pelo jornal O Globo aos melhores do carnaval carioca, que comecei a compreender melhor a complexidade daquele espetáculo. Isso devido ao convívio com meus colegas de banca; e especialmente às minhas conversas com um deles: Bruno Chateaubriand, que assina o livro que vocês têm em mãos.
Jorge Luís Borges dizia que há mais arte na leitura que na escrita; que o ato de ler é mais complexo que o de escrever. Não sei se isso se aplica a artes distintas da literatura; não sei mesmo se tal afirmação é verdadeira. Mas uma coisa é certa: há quem saiba ler melhor que outros; há olhares que percebem mais onde outros vêem menos. E o olhar de Bruno Chateaubriand modificou o meu. Foi seu olhar sutil, atento e sensível quem aperfeiçoou, aprofundou minha percepção de quanto é de fato bela a evolução de uma Porta-Bandeira, de quanto é grandiosa a exibição de um Mestre-Sala.
Mestre-Sala e Porta-Bandeira, uma arte essencialmente nossa trata disso: do olhar de Bruno Chateaubriand sobre a estética do bailado executado em torno do Estandarte. Vocês perceberão o alto grau de complexidade técnica exigida para a execução desse bailado; o enorme poder simbólico que representa; a imensa carga de História que transporta; a extrema sofisticação estética que o coloca no mais alto nível das artes coreográficas do mundo.
Bruno também entrevistou diversas personagens envolvidas com o espetáculo das escolas de samba. São depoimentos fundamentais e surpreendentes, que mudam nossa maneira de enxergar Porta-Bandeiras e Mestres-Salas. Bruno dialogou com pensadores do carnaval e das culturas negras, como Felipe Ferreira e Helena Teodoro; ouviu carnavalescos, como Maria Augusta; estudou a trajetória de grandes artistas do bailado, como Mestre Dionísio, Vilma Nascimento, Rita Freitas e Carlinhos Brilhante — além, é claro, de dar voz aos artistas contemporâneos, mestres-salas e porta-bandeiras, que têm no livro um capítulo especial.
Impressiona a preocupação de Bruno Chateaubriand com o pormenores, com os acessórios que tornam o bailado mais fácil e potencializam sua beleza. Não é por serem acessórios que deixam de ser fundamentais. Assim, lemos os depoimentos de quem faz os sapatos, as fantasias, os mastros, os talabartes e, naturalmente, os próprios Pavilhões.
Não posso concluir sem abordar outro aspecto da obra que me parece importantíssimo: o clamor, o alerta contra a ameaça iminente da estética acadêmica, de origem europeia, que vem se impondo pela interferência cada vez maior de bailarinos clássicos, sem formação nem vivência no ambiente cultural afro-brasileiro, nessa arte que é, como Bruno muito bem define, “essencialmente nossa”.
Isso se dá especialmente porque são bailarinos clássicos que compõem a maioria, se não a totalidade do júri oficial da LIESA; e porque esses bailarinos vêm ultimamente atuando como coreógrafos do par Porta-Bandeira e Mestre-Sala. Num país de tantos preconceitos e fobias, tal imposição é mais um sintoma do racismo estrutural.
Alguém dirá que há traços do minueto francês no bailado dos mestres-salas e porta-bandeiras. É um fato. Tal fenômeno, contudo, se dá por apropriação — e não por imitação. Como salienta Felipe Ferreira em sua conversa com o autor, a coreografia desse “minueto” das escolas de samba é totalmente africanizada. Na verdade, já não é minueto, uma vez que foi canibalizado pela dança e pelo corpo afro-brasileiros. Esse processo antropofágico, de raízes profundamente indígenas, constitui talvez o aspecto mais típico e recorrente na formação da nossa cultura popular — como percebeu, há mais de um século, Oswald de Andrade.
Mestre-Sala e Porta-Bandeira, uma arte essencialmente nossa, do meu querido amigo Bruno Chateaubriand, é um presente, uma relíquia, para quem ama, se emociona e aplaude de pé a passagem do Estandarte, conduzido e protegido — não pela força — mas pela Beleza. Pela indescritível beleza do bailado da Porta-Bandeira cortejada por seu Mestre-Sala.
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